domingo, 13 de janeiro de 2013
As drogas e o ovo da serpente
Através do filme “O ovo da serpente”, o cineasta Ingmar Bergman nos mostrou, tendo como cenário a Alemanha pré-nazista, as consequências do irracionalismo e da indiferença da maioria da população a esse fenômeno.
Guardadas as devidas proporções, porque o filme me impressionou muito, ao ler o artigo da lavra do professor Luciano Elias, coordenador do Programa de Pós-graduação em Psicanálise e Saúde Pública da UERJ, sobre internação compulsória e saúde mental, passei a refletir sobre as consequências da intolerância e do preconceito humanos, notadamente em uma sociedade que vive sob a égide do medo e foi inevitável a associação aos programas de guerra às drogas, como um preocupante crescimento de um ovo da serpente, que toma corpo, através da crescente demonização das drogas consideradas ilícitas entre nós, sobretudo o crack.
O consumo de drogas e entorpecentes no mundo inteiro continua a ser um grave problema, todavia, entre nós, particularmente, o crack tem sido tratado como uma grave epidemia que grassa em todo o território nacional e, com isso, tem sido disseminada a ideia da necessidade de uma resposta emergencial para resolver a questão: a internação compulsória dos dependentes.
Embora a internação contra a vontade do paciente já esteja prevista no Código Civil desde 2001, pela Lei nº 10.216 que instituiu a reforma psiquiátrica, o que vem causando polêmica na atualidade é a intenção de que, doravante, o procedimento deixe de ser adotado como uma exceção, a ser aplicada caso a caso, para passar a constituir uma política de saúde pública.
Como era de se esperar de um assunto de tal complexidade, são muitos os argumentos pró e contra a internação sem consentimento do usuário, o que, inevitavelmente, produz controvérsias previsíveis e, por trás da fumaça do crack, uma polêmica incendeia o debate.
Os argumentos principais dos defensores da internação compulsória baseiam-se no crescente aumento do consumo de drogas no país inteiro, nos poucos resultados das ações de prevenção ao uso e no fato de que a medida já é praticada no país, tendo como diferencial a avaliação de um juiz, usada como último recurso, nos casos em que a pessoa esteja correndo risco de morte devido ao uso de drogas ou de transtornos mentais.
No pólo oposto da questão, os que se contrapõem à medida, contra-argumentam que, pela via das drogas, os setores mais retrógrados do governo e da sociedade estão buscando uma forma de promoção da remanicomialização da “assistência” em saúde mental, pois o discurso sobre a suposta epidemia de crack que assola o Brasil é falacioso, não estando de acordo com a realidade que aponta para o seu uso em pontos específicos de algumas cidades o que pode ser combatido com atendimento na rua, não com estratégias higienistas, com o mero recolhimento de usuários, e na falta de vagas nos estabelecimentos públicos e /ou privados adequados ao tratamento, mesmo destinando-se recursos às entidades da sociedade civil que não tenham fins lucrativos e que atuem neste setor.
Com o governo federal demonstrando ser incapaz de transformar a sua prodigalidade em anunciar ações de prevenção em realidade e com o fracasso dos governos estaduais e municipais em conceber planos capazes de dar conta do desafio do crescimento e multiplicação das “Cracolândias”, esses caóticos e bizarros espaços de concentração de usuários do crack, abre-se espaço para uma abordagem simplificadora do problema que, na prática, materializa mais uma panaceia paliativa, posto que internações compulsórias apenas afastam os dependentes da droga por um certo período, pois se ninguém se torna um drogadicto à força, pela força, também, ninguém se livrará da dependência química.
Nas palavras do professor Luciano Elias: “cresce o ovo: o pensamento higienista, condenatório, excluidor, que por má-fé identifica tratar com fazer desaparecer do cenário público e urbano, da rua, aqueles de quem supostamente se quer tratar , internando-os em “casas”, abrigos, comunidades terapêuticas ou hospitais “especializados” para que esses jovens sejam “eficientemente cuidados até que parem de usar drogas””.
Polêmicas à parte, não há respostas fáceis para a prevenção e o tratamento da dependência química, mas, mesmo com o crescimento no mundo inteiro da consciência de que nunca existiu uma sociedade sem drogas e que todas as tentativas de repressão – todas – só fizeram a corrupção e a violência aumentarem, sem jamais diminuir o uso e o abuso das drogas, continuamos apostando, basicamente, na via repressiva. Por outro lado, mesmo longe de ser uma solução ideal, a internação compulsória talvez seja a única resposta para os casos mórbidos criados pelo vício em drogas tão destrutivas como o crack, como nos alerta Dráuzio Varella: “A internação compulsória é um recurso extremo, e não podemos ser ingênuos e dizer que o cara fica internado três meses e vira um cidadão acima de qualquer suspeita. Muitos vão retornar ao crack. Mas, pelo menos, eles têm uma chance”.
Para a psicóloga Marília Capponi, conselheira e representante do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP): “A dependência química é um fenômeno que deve ser discutido da perspectiva biopsicossocial; o tráfico, o desemprego e a violência pedem intervenções mais amplas e recursos de outras áreas como educação, habitação, trabalho, lazer e justiça”. Mas, em lugar de encarar essa questão de frente, o governo brasileiro, em todas as suas esferas, prefere ditar o que é melhor para o indivíduo mesmo contra a vontade deste. Assim, a metáfora do “ovo da serpente” usada por Ingmar Bergman para exprimir a constatação de um mal em formação na gestação, me parece perfeitamente aplicável a esta e a muitas outras questões que confrontam segurança x liberdade, pois ainda não conseguimos entender que o fascismo começou assim, se apresentando como protetor e como limitador de abusos, mas, gradualmente, se tornou o principal opressor e o maior promotor de abusos contra o povo.
Nesse sentido, como contribuição para o debate sobre as estratégias de prevenção e combate às drogas, licitas e ilícitas, deixo aqui, como uma provocação à reflexão, a mensagem de Ingmar Bergman, pois é do filme este alerta: “Ninguém vai acreditar em você, apesar de que qualquer um que fizer um mínimo esforço pode ver o que lhe espera no futuro. É como um ovo de uma serpente. Através das finas membranas, pode-se discernir o réptil perfeitamente concebido”.
Antonio Jorge Ferreira Melo é coronel da reserva da PM-BA, professor e pesquisador do Progesp (Programa de Estudos, Pesquisas e Formação em Políticas e Gestão de Segurança Pública) da Ufba, da Academia de Polícia Militar e da Estácio-FIB.
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